Arte como poder simbólico: quem controla a narrativa controla o tempo

12/16/20253 min read

Desde sua origem, a arte não nasce neutra. Ela surge como instrumento de registro, distinção e poder simbólico, capaz de definir quem será lembrado e como será lembrado. Nas cavernas pré-históricas, as pinturas não eram simples ornamentos: eram rituais visuais ligados à sobrevivência, à espiritualidade e à organização social. Ao longo da Antiguidade, impérios utilizaram a arte para eternizar vitórias, deuses e governantes, transformando pedra, bronze e pigmento em propaganda política duradoura.

Durante a Idade Média, a Igreja monopolizou a produção artística como meio de educação visual das massas analfabetas. A imagem era doutrina. Já no Renascimento, a arte se emancipa parcialmente do sagrado e passa a celebrar o homem, a técnica e o intelecto, financiada por mecenas que compreendiam o valor estratégico da estética como capital social. A partir desse ponto, arte e poder tornam-se indissociáveis: quem financia, direciona; quem cria, registra.

Ruptura e vanguarda: quando a arte deixa de agradar

Os séculos XIX e XX marcam uma virada decisiva. Com a industrialização, a urbanização e as guerras mundiais, a arte deixa de ter como missão agradar ou representar fielmente o mundo visível. Movimentos como o Impressionismo, Expressionismo, Cubismo e Dadaísmo surgem como respostas diretas ao colapso de antigas certezas. A arte passa a expressar angústia, fragmentação e crítica.

O século XX consolida a arte como território de ruptura intelectual. Picasso não pinta Guernica para ser belo, mas para denunciar. Duchamp não cria o ready-made para decorar, mas para questionar o próprio conceito de arte. Nesse momento, a obra deixa de ser apenas objeto e passa a ser ideia, deslocando o eixo do valor artístico da técnica para o discurso.

Essa transformação redefine o papel do artista: de artesão ou ilustrador do poder, ele passa a ser agente crítico da sociedade — muitas vezes à margem, incompreendido em seu tempo, mas central na história.

Arte contemporânea: mercado, discurso e espetáculo

No cenário contemporâneo, a arte ocupa um espaço paradoxal. Nunca foi tão conceitual — e nunca foi tão mercantilizada. Galerias, feiras internacionais, leilões e fundos de investimento transformaram obras em ativos financeiros, enquanto museus disputam relevância cultural e audiência. O valor de uma obra, muitas vezes, passa menos por sua potência estética e mais por sua capacidade de gerar narrativa, escassez e status.

Ao mesmo tempo, a arte contemporânea assume protagonismo nos grandes debates do nosso tempo: identidade, raça, gênero, colonialismo, tecnologia, sustentabilidade. Instalações, performances e obras imersivas buscam envolver o espectador não como observador passivo, mas como participante do discurso. A experiência torna-se tão relevante quanto o objeto.

Esse fenômeno aproxima a arte de outros campos — moda, arquitetura, design, cinema e branding — dissolvendo fronteiras tradicionais. A estética passa a ser linguagem estratégica, capaz de construir posicionamento cultural tanto para artistas quanto para marcas.

Arte, tecnologia e autoria no século XXI

A incorporação de tecnologias digitais redefine os limites da criação artística. Inteligência artificial, realidade aumentada, NFTs e ambientes virtuais questionam conceitos centrais como autoria, originalidade e permanência. Uma obra pode ser replicada infinitamente — e ainda assim manter valor simbólico. O artista torna-se, muitas vezes, um curador de processos, algoritmos e sistemas.

Essa transformação não elimina a arte tradicional, mas amplia o campo. Pintura, escultura e desenho coexistem com códigos, dados e experiências imersivas. O que permanece constante é a função essencial da arte: interpretar o tempo presente. Em um mundo saturado de informação, a arte oferece síntese, provocação e memória.

Mais do que nunca, ela atua como arquivo sensível da humanidade — registrando não apenas fatos, mas emoções coletivas, medos, aspirações e conflitos que estatísticas não conseguem traduzir.

Referências

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. São Paulo: Brasiliense, 2012.

DANTO, Arthur C. Após o fim da arte. São Paulo: Edusp, 2006.

GOMBRICH, Ernst H. A história da arte. 16. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2012.

HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BISHOP, Claire. Artificial hells: participatory art and the politics of spectatorship. Londres: Verso, 2012.